Uma família evangélica é a primeira a receber, por meio da Defensoria Pública de Mogi das Cruzes, um salvo-conduto para o cultivo da maconha medicinal. O documento, que reconhece o plantio como não-criminal, também permite que Andreia Rodrigues e o marido Djovaldo Rodrigues produzam o óleo de canabidiol (CDB) em casa para o tratamento das filhas.
As gêmeas Isabella e Isadora, de 8 anos, têm diagnósticos de autismo, paralisia cerebral e epilepsia. Antes do uso do fitoterápico, uma das meninas chegava a ter 50 convulsões por dia. Hoje, com quase dois anos de tratamento, elas não sofrem mais com as crises e tiveram avanço no desenvolvimento motor e cognitivo.
Em uma entrevista ao G1 em junho de 2020, Andreia falou sobre como superou o preconceito e se tornou ativista da causa. Na época, as filhas já usavam o óleo de cannabis mediante prescrição médica e apresentavam resultados significativos, segundo a mãe.
“Eu fico muito feliz em saber que agora poderemos cultivar a santa erva. Eu digo santa, porque na época nós tínhamos muito preconceito, porque somos evangélicos, mas a gente viu o que a planta fez. Da água para o vinho, a nossa vida mudou”, relata. “[Antes] Eu tinha muito preconceito. Eu tinha medo de quem usava maconha”.
Na decisão, o Juiz Tiago Ducatti Lino Machado, da 3ª Vara Criminal de Mogi das Cruzes, determina “às autoridades de Segurança Pública Estaduais, Municipal e Federal e seus subordinados que se abstenham de prender, conduzir ou indiciar a paciente pela conduta de semear, cultivar e fazer a colheita de sementes, plantas ou óleos extraídos de cannabis, e de apreender tais sementes, plantas e óleos”.
Além de facilitar o tratamento, a medida também traz um alívio para o bolso da família. Eles chegaram a obter a autorização junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importação do produto. No entanto, em razão do alto custo, tornou-se impossível a manutenção do tratamento – cada frasco custa cerca de R$ 1 mil, sendo que mensalmente as crianças necessitam de três.
Agora, Andreia espera que seu caso sirva como exemplo e incentive o judiciário a conceder autorização para outras famílias que, como a dela, tiveram a qualidade de vida transformada pelo produto.
“A cannabis salva vidas, como salvou a vida das minhas filhas. Durante a pandemia, a gente receber uma notícia dessa, foi uma benção na nossa vida. Como eu disse para a defensora, que eu seja a primeira de muitas que virão”, comenta a mãe.
Não-criminal
O processo levou pouco mais de um ano. Inicialmente, Andreia e o Djovaldo receberam um habeas corpus, que impediria a prisão do casal, caso fossem flagrados cultivando a planta. Já o salvo-conduto, que saiu no início de abril, reconhece o ato como não-criminal e autoriza a família a cultivar uma determinada quantia de pés de maconha, produzir e portar o óleo.
A questão da cannabis para fins medicinais não é regulamentada no Brasil e seu cultivo é proibido em todo o território nacional, como prevê a Lei Antidrogas (11.343/2006). Por isso, para plantar e produzir o extrato, é preciso ter uma autorização judicial que regulamenta quem poderá fazer isso, quantos pés poderão ser mantidos e por quanto tempo.
“Eu pedi uma quantidade generosa, porque pode surgir pragas, pode surgir um monte de coisa. Se a gente conseguir uma colheita boa, dá a quantidade de óleo. A autorização seria por tempo indeterminado porque, no caso das minhas filhas, não tem cura. É só tratamento. Eu expliquei que elas não podem ficar sem o óleo, porque já aconteceu de a gente ficar sem e elas terem crise”, relata a mãe.
Com a tão esperada autorização, a família precisa se preocupar com os próximos passos. Primeiro, devem definir onde a erva será plantada. Segundo, precisarão de sementes e de uma estrutura que permita o crescimento saudável e livre de pragas. Porém, apesar dos desafios, ela reconhece que o mais difícil já passou.
“Aqui no condomínio é fechado. É difícil, não tem espaço. A gente está vendo um pedacinho de terra em um sítio para fazer os cultivo. Eu também precisaria agora de doação de plantas. Eu vou ter importar sementes, porque é difícil conseguir que alguém conceda tantas mudas. A média da semente, que chama automática, é de R$ 20 a R$ 30. Eu ainda não importei”.
“Eu poderia estar com várias plantinhas, mas eu fui cautelosa e esperei a decisão sair. Já tenho um pé e, através da planta, dá para fazer um clone, tirar uma muda. Isso leva tempo, porque ela precisa estar grande e forte. Agora estou na correria para conseguir, mas estamos muito felizes. É uma benção que eu nem acredito”.
Tratamento com cannabis
A família relata que as crises epiléticas das gêmeas cessaram logo após o primeiro uso do óleo. Desde então, se tornaram raras. Sem convulsões frequentes, o desenvolvimento das crianças também melhorou, como relata a mãe.
“A Isabela já está, praticamente, andando. Fica paradinha, está apontando, se comunicando. Ela entende tudo. A Isadora também fala de tudo. Elas estão super bem. Comem bem. A gente fala que o canabidiol é o óleozinho da alegria”, brica.
“Até pouco tempo, até fisioterapia elas estavam fazendo. A gente não tem como parar de vez, mas elas estão muito bem. As vezes a Isabela solta alguma palavra. Elas mostram uma evolução grandíssima. Ela não tomava água e, agora, até aponta para água e pede. Coisas que ela não faria se não usasse ele”.
A neurologista Fernanda Moro, que atende Isabella e Isadora, acompanha esse processo. Ela lembra que a sugestão do uso do óleo partiu de Andreia, mas que acatou a ideia por acreditar nos benefícios do produto. Ela afirma, inclusive, que a família é um exemplo do avanço da ciência.
“A prescrição da cannabis medicinal é relativamente recente. Nós temos artigos dos anos 1970, 1980. As pesquisas com cannabis são complicadas no mundo inteiro. Atualmente tem sido mais fácil, porque temos conseguido comprovar o tanto que ela ajuda e controla. Foi o que aconteceu com as meninas”, relata.
“A gente teve um controle de crise absurdo. Imagina você ter uma criança que convulsionava até 50 vezes por dia e hoje em dia é raro ela ter um escape em crise. Ultimamente ela não tem mais nenhuma. Além disso, você vê a melhora na parte motora. A criança que ficava contida na cadeirinha, não interagia muito e tinha dificuldade até para ser nutrida, agora responde bem às terapias, fisioterapias, ficou mais atenta e quer brincar mais”.
Atualmente, Fernanda também tem outros pacientes que fazem uso do canabidiol. Ela detalha que o produto, que pode ser receitado por qualquer médico, tem mostrado resultado positivos no tratamento de doenças degenerativas.
“Como é uma coisa recente, muita gente ainda não prescreve. Na teoria, qualquer médico pode prescrever. Não precisa ser só neuro ou psiquiatra. A gente acaba acompanhando doenças degenerativas, que estão ali no âmago das pesquisas da cannabis, e acabam sendo mais forte no nosso dia a dia”, detalha Fernanda.
“Cada vez mais os médicos estão atentos à medicina canabinoide e passam a prescrever mais. Além da epilepsia, a gente tem bastante melhora em pacientes com Parkinson, Alzheimer, esclerose múltipla. Tanto que a primeira medicação à base de cannabis surgiu para esclerose múltipla. Você começa a desmistificar um pouco e percebe que nem tudo que parece droga é droga”.
Fonte: G1