Quando abre a janela da casa em que mora há 12 anos, em Itaipava, bairro de Petrópolis (RJ), o escritor Antônio Torres depara-se com um pedaço de mata atlântica. O sertanejo, que alguma vez referiu-se a si mesmo como velho menino ou menino velho, tem lamentado muito o devastamento do verde na Amazônia e do Pantanal, mas também a destruição da cultura nacional ao longo dos últimos meses. E tem dúvidas se viverá para ver o Brasil virar a página das tragédias ambientais, culturais e humanitárias que assolam o país.
“Onde esse país estava escondido que nós não vimos?”, questiona Torres, que era um jovem de 24 anos quando o golpe militar depôs João Goulart, viu diferentes presidentes militares e civis, mas não recorda de um período que seja comparável aos dias atuais.
De frente para a vegetação do Rio de Janeiro, desde que começaram “a pandemia e o pandemônio”, tem se apegado aos “galhos das memórias”, como define as boas lembranças que mantém ao longo de 80 anos de vida, completados no último dia 13 de setembro. Parte dessas recordações salta aos olhos nas conversas que mantém no WhatsApp dos 11 irmãos, desde o primogênito famoso ao caçula, o músico e publicitário José Ranildes, 59 anos, que mora na capital baiana.
Uma das lembranças que, ainda hoje, emocionam Torres são as cartas de amor que escrevia, aos 9 anos, no Junco, parte do atual município de Sátiro Dias, para casais de namorados que não tinham estudo para escrever nem ímpeto de fazer uma declaração cara a cara.
Uma responsabilidade muito grande para o menino que ganhou fama de letrado na comunidade aos 7 anos, quando sua professora o escolheu para ler na frente de toda a gente um poema de Castro Alves. “Era uma região agrária e ágrafa”, descreve o escritor, que na infância recebia como recompensa dos enamorados envelopes de dinheiro, pães de ló e doce de banana na palha.
Recentemente, em um encontro com Fernanda Montenegro, Torres brincou sobre Dora, a protagonista de Central do Brasil, que ganhava dinheiro escrevendo cartas para imigrantes analfabetos. “Ela era má. Eu não cobrava de ninguém. As pessoas me davam doces porque queriam”, diverte-se o escritor ao relembrar o diálogo com a atriz.
Mas o pequeno Antônio também entrou em contato cedo com a dor alheia. Sofria ao ver mulheres que, imagina, tinham de 25 a 35 anos, abraçando-o às lágrimas depois que ele lia as cartas que seus homens mandavam da região cacaueira, onde haviam ido arranjar meio de vida.
O primeiro texto de Antônio Torres a ser publicado em um jornal saiu em 1959, na coluna assinada por Adroaldo Ribeiro da Costa, no jornal A TARDE. Eram suas ponderações sobre a discussão que havia tomado conta de Alagoinhas, onde terminava os estudos, sobre um garoto que perdeu as pernas em um acidente ferroviário. Os munícipes discutiam se o menino devia continuar vivo ou ser sacrificado. A indignação do jovem Antônio virou uma crônica no jornal. No dia seguinte, o professor de português de sua escola, de prenome Artur, entrava em sala de aula com o jornal na mão, orgulhoso do aluno.
Um cão uivando
Depois de experiências em redações de jornal e agências de publicidade, Torres lançou seu primeiro livro, Um cão uivando para a lua, em 1972. Uma história programada para ser um conto, inspirado na tragédia pessoal de um amigo que enlouqueceu, acabou virando um romance oito meses depois de começar a ser escrita.
O livro de estreia foi saudado com entusiasmo pela crítica e, em Recife, desbancou Jorge Amado na lista dos mais vendidos. Um texto do filósofo e ensaísta baiano Carlos Nelson Coutinho, na revista Visão, rasgava elogios aos então escritores iniciantes Antônio Torres e Moacyr Scliar, que se tornariam grandes amigos.
Em 1976, veio a consagração definitiva com Essa Terra, livro sobre a experiência retirante que anos depois seria adotado na bibliografia da rede estadual de ensino na Bahia. “Há muita vida em sua narrativa, nas quais as relações familiares, culturais e econômicas envolvem as personagens em dilemas, buscas, crises e superação”, afirma Aleilton Fonseca, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, um dos maiores especialistas na obra de Torres.
O primeiro contato com o trabalho do escritor aconteceu em 1981, quando Fonseca leu Essa Terra para explicar aos seus alunos o tema do romance, a sua estrutura e os personagens. “Sua ficção é muito crítica e expressiva, ao tratar do tema da migração do sertanejo para o Sudeste, e também ao mostrar o dilema da vida nas grandes cidades”.
Um sertão próprio
Ex-aluna de Fonseca, Ivana Gund esmiuçou a obra de Torres na dissertação de mestrado e na tese de doutorado. Ela considera que Torres desenvolveu nos livros o seu próprio sertão, diferente do de Guimarães Rosa, diferente do de Graciliano Ramos.
“É algo que a gente sente como nosso, mas que pode ser entendido por um estrangeiro. Trata-se da experiência de migrar”, diz Ivana, uma mineira que mora na Bahia desde os 14 anos e percorreu boa parte do sertão baiano.
Há dez anos, encontrou-se com Torres em Feira de Santana, a Princesinha do Sertão, para uma homenagem ao escritor pelos seus 70 anos. “Ele é muito doce. Às vezes, você adora um livro, mas fica com medo de conhecer o autor para não se decepcionar. Mas foi ótimo conhecê-lo”, diz.
O imortal Torres, membro da Academia Brasileira de Letras eleito em 2013, estava se preparando para comemorar os 80 anos com a publicação de seu mais recente romance, Querida Cidade. A pandemia empurrou os planos para o ano que vem, mas ele não está parado. Participa de várias palestras online, feiras, discussões, homenagens. E se alegra quando percebe que os vídeos tiveram muitas visualizações. Esta semana, no dia 29, participa da Feira Literária da Chapada Diamantina (Flich), às 11h, no Instagram: @iiflich.
E está “devorando” Um dia chegarei a Sagres, mais recente trabalho da também imortal Nelida Piñon: “Recomendo ardentemente a leitura”. E também começou um novo trabalho. Um conto sobre os tempos de pandemia, a perda de amigos, o medo de ser contaminado e morrer, o pânico do noticiário. É um conto, mas, assim como o livro de estreia, pode ser que vire um romance.
Fonte: Gilson Jorge / Jornal A Tarde