“Quando entrou a Covid-19, ela [patroa] achou por bem tirar uma cadeira que eu sentava, para eu sentar no chão”. É o que relata uma empregada doméstica da Bahia, que prefere não se identificar, sobre momentos de humilhação protagonizados pelos patrões em Salvador.
A trabalhadora, de 61 anos, revela abuso psicológico durante os seis meses de 2020 que trabalhou em uma casa na capital baiana, quando já havia registro de pandemia no Brasil.
A mulher contou sobre condições desfavoráveis e diz não querer se identificar por medo e vergonha. Segundo ela, os direitos eram constantemente violados e, por diversas vezes, era obrigada a comer no chão.
“Era muita humilhação. Ela [a patroa] tirou a cadeira que eu sentava porque empregada doméstica não podia estar sentada. E eu sentava para almoçar ou no horário de descanso, que eu achava que eu tinha que descansar”, relata.
A mulher explicou que trabalhava com outras duas colegas em condições humilhantes e precisava, por conta própria, fazer seu horário de descanso, único momento do dia quando ela conseguia sentar-se.
Ela também conta que ficou traumatizada após a experiência. Mesmo sem ter de onde tirar o sustento, ela diz que não quer trabalhar como empregada doméstica. Segundo a mulher, além das péssimas condições de trabalho, outra funcionária já foi agredida fisicamente na mesma casa.
“Hoje, se disser que tem um emprego doméstico, eu não quero mais. Tinha uma menina antes de mim que apanhou lá dentro. Então eu não quis chegar a essa situação e aguentei por seis meses”, declarou.
A doméstica acrescentou que as pessoas tendem a não denunciar ou pedir demissão por causa da necessidade do emprego, o que só aumenta os danos psicológicos.
“Hoje estou desempregada. Não tenho de onde tirar. Então muita gente segura pelo dinheiro, porque sabe que aquele dinheiro é certo no final do mês. E esquece que está sendo prejudicada pelos maus-tratos. Isso fica no coração da gente”.
O Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia registrou 28 casos de mulheres mantidas em cárcere privado no estado em abril deste ano, além de situações de violências psicológicas contra as empregadas. E, de acordo com informações da categoria, relatos de abusos praticados por patrões aumentaram cerca de 80% durante a pandemia da Covid-19.
A carga horária máxima permitida é de 44 horas semanas, o equivalente a oito horas por dia. O que exceder este tempo, deve ser compensado com folga ou pagamento de horas extras.
No entanto, casos de exploração não são tão incomuns, e, segundo algumas trabalhadoras, relatos de agressão física têm acontecido em algumas famílias.
Pandemia e violência
Segundo a secretária geral do sindicato, Milka Martins, a pandemia de Covid-19 agravou ainda mais as situações de violência contra as profissionais. Ela disse que, em alguns casos, os patrões não permitem que as domésticas voltem para casa e, quando acontece, não há preocupação com o deslocamento ou segurança das trabalhadoras em meio às aglomerações.
“A maioria dessas mulheres está sendo obrigada a ficar no local de trabalho. A maioria dessas mulheres têm família. E se elas não aceitarem, elas são demitidas ou obrigadas a reduzir a carga horaria. Em vez de pegar de segunda a sábado, elas pegarem dois dias na semana ou permanecer o local de trabalho até terminar a pandemia”, disse Milka.
A representante da categoria explicou que a federação com os 22 sindicatos de todo o Brasil tem se reunido para discutir soluções para situações onde há desrespeito às leis trabalhistas e crime contra as trabalhadoras e disse que a violência se torna ainda maior quando as mulheres não podem voltar para casa.
“Se essa trabalhadora já está sendo obrigada a permanecer no local de trabalho, a violência que ela sofre é ainda maior porque ela não tem como sair para casa para descansar, ver seus filhos. Está dentro de um ambiente onde a violência à noite é ainda pior”, comentou.
Relação amistosa
Um exemplo de boa relação entre empregado-patrão também foi registrado em Salvador. A professora Stefane Motta e a empregada Mara Nunes desde sempre têm uma vivência tranquila. E com a pandemia e a necessidade e passar mais tempo em casa, a família precisou se mudar e, em comum acordo, a doméstica acompanhou. O que foi positivo para ambos os lados.
“A gente morava na Vitória e temos uma casa em Busca Vida. Quando começou a pandemia veio todo mundo para cá e Mara veio com a gente. Foi um combinado mútuo. Ela passava uma semana aqui, outra em casa. A gente levava e buscava”, disse a professora.
Mara, por sua vez, disse que não tem do que se queixar e afirmou que conseguia dividir o tempo entre a atenção ao trabalho e atenção aos filhos e à própria casa.
“Para mim foi tranquilo. Não tenho filho pequeno e eu ficava uma semana aqui e uma em casa. Não tive problema nenhum”, afirmou.
O que dizem os especialistas
A professora e doutora em Direito Penal, Daniela Portugal, classificou a conduta como um crime “muito grave”, que pode ser punido de dois a oito anos de prisão. Além disso, como o a infração é considerada “crime permanente”, o patrão pode ser preso em flagrante.
“Sem dúvida estamos diante de um crime muito grave. E no meu olhar, mais adequado que o crime de sequestro e cárcere privado, será o crime de redução à condição análoga à de escravo, previsto no artigo 149 do Código Penal e punido com pena de dois a oito anos.
De acordo com a jurista, o caso é de competência da Justiça Federal e deve ser combatido, principalmente em tempo de pandemia.
“Outra observação muito importante é que como se trata de um crime permanente, que se consuma enquanto durar a redução à condição análoga à pessoa escravizada, poderá acontecer a prisão em flagrante e a competência para processar e julgar esse delito, o pleno do STF entendeu que é da Justiça Federal. Estamos diante de um crime muito grave e que precisa ser severamente combatido, sobretudo em tempos de pandemia”, afirmou.
Fonte: G1 / Foto: Reprodução TV Bahia